Os acontecimentos das últimas semanas mostram o preço que está sendo cobrado à democracia brasileira pelo ativismo político do Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo um ministro com o perfil de Gilmar Mendes teria pensado duas vezes para interferir na tramitação de um projeto de lei em tramitação no Legislativo, ainda mais por meio de um ato de decisão pessoal (o chamado ato monocrático), se não tivesse confiança de que esses últimos 10 anos hipertrofiaram o Judiciário e deram àquele o respaldo de setores poderosos da sociedade para arriscar por mares nunca antes navegados na democracia brasileira. Nunca antes uma intenção de lei foi vista como risco à Constituição por nenhum ministro do Supremo – e talvez também nunca um partido político com representação no Legislativo tenha ido tão longe para supostamente fazer valer o direito de uma minoria, ao entrar com um mandado de segurança contra uma decisão ainda em exame no Congresso.
A intervenção de Mendes no exame, pelo Senado, de projeto de lei que impõe limitações à criação de novos partidos, a pedido do PSB do governador Eduardo Campos (PE) – que assim deslegitima um poder no qual está representado – é um absurdo, do ponto de vista democrático e jurídico. E tem um potencial muito maior de colocar em risco as relações entre os poderes, ou a própria democracia, do que uma mera tramitação da Proposta de Emenda Constitucional de número 33, que estabelece limites às declarações de inconstitucionalidade do Supremo. Isto, pelo simples fato de que uma reação do Legislativo à invasão do Judiciário, no caso da tramitação de uma lei na casa, pode criar uma crise institucional; e a submissão a esse absurdo jurídico criado por Mendes pode tornar essa invasão de competência uma regra na democracia brasileira. O precedente é gravíssimo. No caso da PEC 33, se ela for aprovada pelo Congresso, a Constituição ainda dá o recurso da declaração de inconstitucionalidade pelo STF. Isto é: no primeiro caso, Mendes criou um constrangimento difícil não apenas para o Legislativo, mas para a democracia. No segundo caso, numa eventual aprovação da PEC 33 pelo Congresso (uma hipótese remotíssima, aliás), qualquer parte legítima teria o poder de questionar a constitucionalidade da matéria no próprio STF – que teria a palavra final sobre o assunto sem intervir na sua tramitação dentro do Legislativo. Aliás, em qualquer um dos dois casos – do projeto que limita os direitos dos novos partidos e a PEC 33 – o STF teria a última palavra, se os seus ministros esperassem que elas se tornassem lei ou emenda constitucional e julgassem ações diretas de inconstitucionalidade sobre as duas matérias. A forma como o STF agiu nos dois casos (num, suspendendo; noutro, permitindo que seus ministros dessem declarações de guerra contra o processo legislativo) foi demonstração de poder. Atos de arrogância de um poder que, pela Constituição, deveria ter o mesmo peso que os demais.
Uma das razões da hipertrofia do Judiciário é o fato deste poder ter se colocado como parte das disputas políticas que deveriam apenas marginalmente ser arbitradas pelo Judiciário. Esta é uma inversão do que seria o seu papel constitucional.
A política brasileira, nos últimos 10 anos, tem dividido de forma muito precisa uma parcela de poder que é definida pelo voto (e aí o PT, devido ao sucesso de seus governos e a uma política muito flexível de alianças eleitorais tem sido imbatível) e uma parcela de poder da oposição que, desidratada por decisões políticas equivocadas e pouco acesso ao eleitor, se move no cenário político provocando o apoio de instâncias de poder que não são definidas pelo voto (STF, Ministério Público Federal, Polícia). Cria-se um cenário onde o PT tem a maioria continuada dos votos e a oposição se move com muita desenvoltura no convencimento das instituições. O PT, seus governos e seus aliados não conseguiram vencer a guerra de convencimento dentro dessas instituições, e a predominância ideológica de seus opositores nelas as torna muito mais do que meros atores de um sistema de freios e contrapesos da democracia. Elas se tornaram, ao longo dos últimos 10 anos, contrapontos políticos às instituições cujo domínio é definido pelo voto, ou seja, o Legislativo e o Executivo.
A ação dessas instituições não constituídas pelo voto têm ido além do louvável papel de garantir direito de minorias. No caso do STF, por exemplo, as decisões mais agressivas contra o Congresso (e o Congresso não é PT, é outro poder da República, que deveria ser tratado numa posição de equilíbrio) foram provocadas pela oposição ou pelas minorias legislativas: todas as decisões importantes perdidas no voto foram levadas à Suprema Corte que, não raro, desqualificou as maiorias e as decisões da casa. O PSB, que decidiu ser oposição para contrapor o governador Eduardo Campos à presidenta Dilma, nas eleições presidenciais do ano que vem, entrou na lógica de que é legítimo, numa disputa político-eleitoral, tornar o STF uma extensão do plenário do Congresso. O PSB é o autor do mandado de segurança que deu o pretexto para o ministro Gilmar Mendes, na semana passada e numa decisão inédita para o Poder Judiciário em qualquer tempo, suspender a tramitação de uma proposta de lei no Senado por entender que sua intenção era inconstitucional. PSDB e PSB também são parte de um mandado de segurança para impedir a tramitação de outra proposta, a PEC 33, que limitaria os poderes do Supremo para declaração de inconstitucionalidade.
Nas duas últimas semanas, chegou à irracionalidade a aliança entre partidos de oposição e STF. É imprudente que os partidos usem o Judiciário para, sempre, impedir decisões majoritárias de representantes eleitos pelo povo, em questões que elasticamente têm sido apresentadas como cláusulas pétreas da Constituição. Na prática, essa forma de fazer política tem retirado o poder do Congresso de legislar sobre partidos e eleições, por exemplo. As decisões tomadas pelo STF por provocação dos partidos ao longo do tempo (aliás, além dessa última década de dobradinha oposição-SFT), simplesmente descredenciam os parlamentares a decidir sobre a legislação eleitoral e partidária: o TSE, legitimado pelo STF, derrubou as cláusulas de barreira previstas na mesma Constituição de 1988 que conferiu ao Supremo amplos poderes, instituiu a fidelidade partidária que era relativa, na tradição legislativa pós-ditadura; foi a última palavra nos direitos dos partidos novos ao tempo de rádio e televisão e à cota do Fundo Partidário; e agora, simplesmente suspendeu uma intenção dos parlamentares, de reintroduzir na lei o que o STF dela tirou, ou seja, regras para reduzir o excessivo número de partidos que existe no país e, segundo qualquer especialista em política, é a causa de problemas de governabilidade da democracia brasileira. Se, como resposta a isso, prosperar a ideia de constituinte exclusiva para fazer a reforma política, isso será uma resposta ao autoconcedido poder do STF de ser o único legislador legítimo sobre questões eleitorais e partidárias.
(Maria Inês Nassif- JornalGGN/via Conversa Afiada)
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